universidade lusófona

VII CICLO DE CONFERÊNCIAS INTERNACIONAIS ECATI – MCB

Do impulso arquivial

Existe uma singular família semântica que liga subterraneamente arquivo, arquitetura, autarquia, anarquia, centrada na palavra arché sobre a qual nos informa Derrida que “nomeia simultaneamente o começo e o comando”. O começo em que se funda o existente, quer físico quer histórico, e a lei que ordena o real, que o estabiliza e delimita. Este ponto de vista, toda a permanência teria uma natureza arquivial, constituindo uma espécie de “memória objectiva” (Simmel). Não haveria história sem esse arquivo geral que esteve sempre em acto, inconscientemente, mas que na modernidade emerge decisivamente, descrito por Hegel como uma imensa “galeria de imagens”, que se confunde com a própria substância do mundo.

É certo que, na sua face visível, o arquivo tem de ser territorial, armazenando e classificando uma infinidade de objectos e registos, colocando-os à disposição. Arquivos nacionais, museus, coleções, coleções do Instagram ou o Youtube, as procuras da Google, as fotografias debotadas nos aparadores antigos, os bits que esperam ganhar imagem num arquivo de computador… Que todos sejamos colecionadores, que existam arquivos particulares ao lado dos arquivos nacionais, museus de todo o tipo, não diz que estejam separados, são antes o aparelhamento técnico do arquivo geral.

As bases de dados digitais acrescentam-se a esta tecnologia arquivística, ao mesmo tempo que se generalizam e cruzam criando um espaço plástico, dinâmico, relacional e combinatório, de que Internet é um exemplo essencial, estando aparentemente a pôr em causa a ordem do arquivo, a sua indexação rígida e a sublimidade do documento único. Como afirma Wolfgang Ernst “As bases de dados em rede assinalam o começo de uma relação ao conhecimento que dissolve a hierarquia associada ao arquivo clássico”. Mas pode sempre colocar-se a questão de saber se da generalização das bases de dados não corresponderá o modo culminante do impulso arquivial, que sempre deu a resposta a uma pergunta tardia de Philip K. Dick: “Porque é que o real não se desfaz em pedaços?”. A resposta poderá passar pela sugestão de que a propriedade do arquivo é a de transmitir sem perdas o arquivo da propriedade, o verdadeiro ADN do real.

Trata-se assim de uma questão intensamente política. Sabe-se como na revolução francesa os registos senhoriais de propriedade foram destruídos pela plebe, mas também as obras de arte e que apagar os arquivos, por exemplo, das multas de trânsito é um doce alívio. Tudo indica que a pura relacionalidade do arquivo digital intensifica e liberta elementos anarquivísticos que estiveram sempre presentes. Existe aliás um elemento nihilista na maneira como numa biblioteca o livro dos livros na biblioteca está ladeado por outros que o contradizem ou lhe são indiferentes, ou pela maneira como se torna num livro qualquer perdido no meio da imensidão dos livros.  As novas bases de dados estão a alterar o processo, por serem puramente relacionais, permitindo criar objectos digitais novos e efémeros como as pesquisas da Google, mas seria excessivo pretender que com isto se aboliu o princípio arquivial e que tudo depende das estratégias com que se utilizam os dados. De facto, existe um travejamento algorítmico que continua a velha função de controlo, e que assume novos contornos. Levando alguns a acentuar a sua afinidade com o capital, outros ao insistir nos perigos de uma vigilância instantânea, outros ainda, a denunciar como a dinâmica das bases de dados e que os seus algoritmos  estão a recriar o sujeito através da exploração do registo da  infimidade dos actos, etc.

Explicitar o arquivo na sua forma hibrida actual abre assim um espaço de intervenção e de pensamento, revelando novas possibilidades e novos perigos.

Walter Benjamin refere um arquivista muito especial, o colecionador: “o verdadeiro colecionador retira o objeto de suas relações funcionais… para ele o mundo está presente em cada um de seus objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado, porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreensível para uma mente profana”. Trata-se de privilegiar novos arranjos, de criar novas lógicas de ligação. As databases mostram como as ligações e relações se tornaram cruciais. É sobre elas que se jogam as novas figuras da política e da arte, da técnica e da economia.

É sobre estas figuras e possibilidade que os especialistas convidados irão reflectir e debater no VII Ciclo de conferências ECATI-MCB.

Organizadores:

José Bragança de Miranda e José Gomes Pinto