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História do secreto: Os arquivos da PIDE e a manipulação do visível

Participantes: Jacinto Godinho

Quarta-feira, 27 de Setembro às 18h no Auditório do Museu Colecção Berardo 

Esta conferência é o resultado de um trabalho de nove anos de pesquisas em arquivos. Normalmente o arquivo orienta-nos na estabilização e interpretação da realidade, processando-a em narrativas e daí em história e ou memória. Mas a tarefa proposta de construir uma história visual da polícia política do Estado Novo – A PIDE – implicava a inversão do processo regular de consulta dos arquivos. É preciso procurar no arquivo não o que ele mostra, mas o que ele esconde. Pesquisar nos processos minuciosamente elaborados a impressão, o traço, o indício dos arquivistas, dos homens que construíram e usaram o arquivo para constituir um poder quase total como era a máquina política da PIDE.

O arquivo da Pide não era apenas um representante mnemotécnico, um auxiliar de memória. O seu arquivo era um dispositivo central do espectáculo do sigilo que sustentava a política da polícia política do Estado Novo. Chamo-lhe dispositivo porque é complexo e obriga a leituras diversas: técnicas, políticas e filosóficas. Desde logo o arquivo era usado para construir poder de duas formas. Primeiro para construir uma minuciosa história da oposição. Rigorosa e monumental na descrição de todos os grupos, formas ou sinais deixados por quem se opunha ao regime. A Pide perseguia a oposição com uma imensa visibilidade reticular de palavras e imagens. Mas o verdadeiro poder estava no facto desse arquivo ser secreto. O fundamental poder arcôntico do arquivo, enunciado por Derrida, foi totalmente explorado pela Pide. O arquivo reservado, confidencial, alimenta a autoridade soberana retirada do privilégio de quem pode aceder ao secreto. A lógica do segredo é, no dispositivo, muito mais potente que a relevância dos conteúdos. A mera sugestão de que ali poderão estar os pecados inconfessáveis de milhões de pessoas (mesmo que não existam de todo ou sejam informações irrelevantes) é o suficiente para criar uma potência política fortíssima, para alimentar o medo criando um forte espectáculo do sigilo, fonte de todas as formas de autoritarismo.

A outra forma de construir poder é ocultando-se no arquivo. Invisibilizando-se no fora-de-campo. Os processos da Pide têm os resultados dos interrogatórios aos detidos mas ocultam de forma radical os nomes dos agentes e os métodos investigação, chantagem e tortura, praticados para os obter. A Pide conseguiu ocultar-se por detrás do arquivo que construiu e com isso construiu um duplo poder aliando o poder sobre a visibilidade ao poder da invisibilidade. Requerendo, no fundo, a mesma lógica do poder divino.

Reconstruir a visibilidade do dispositivo da invisibilidade foi a tarefa proposta para a realização de uma série documental sobre a PIDE. Mas esta tarefa de reposição não pode ser feita sem uma avaliação crítica do gesto que nos empurra para este desejo de memória. A memória raramente é um museu do passado. É antes um instrumento político do presente. Convoca o arquivo como forma de individuação requerendo com isso poder e legitimidade. A proliferação de museus e de outras superfícies de inscrição das imagens indicia um mal de memória que interessa também avaliar. A memória raramente é inocente.

Jacinto Godinho

Jacinto Godinho, doutorado em Ciências da Comunicação pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, é professor auxiliar do Departamento de Ciências da Comunicação da UNL onde lecciona, desde 1993, as disciplinas Teoria da Reportagem, Discurso dos Media e Géneros Televisivos. Entre várias outras publicações destacam-se os livros As origens da reportagem – Imprensa (2009) e As origens da reportagem – Televisão (2011). É também jornalista dos quadros da RTP (Rádio e Televisão de Portugal) desde 1988. Como repórter especial fez vários trabalhos de investigação premiados, como “Tráfico de hormonas para a carne de vaca” (1993) e “Caça aos golfinhos nos Açores” (1994).

Produziu e realizou e várias séries documentais, como é o caso de “Memórias do Cinema Português – 100 anos de história” (2001); “Ei-los que Partem – Uma história da Emigração Portuguesa” (2006), “Os Últimos Dias da PIDE” ( 2015) e “A Pide Antes da Pide” (2016). Venceu por duas vezes o mais importante e prestigiado galardão de jornalismo atribuído em Portugal – o Prémio Gazeta do Clube de Jornalistas.